Reviews e Análises
Aquarius | Crítica
Nota: O texto abaixo não contêm spoilers. No entanto, há alguns debates sobre os elementos utilizados para a construção da trama. Caso considere que isso seja alguma revelação da história, sugiro que leia a análise somente após assistir ao filme.
Dirigido e roteirizado por Kleber Mendonça Filho. Com: Sônia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Julia Bernat, Humberto Carrão, Carla Ribas, Paula De Renor, Thaia Perez.
Aquarius é uma obra sensível e afetuosa, que narra a história de Clara (Braga) e sua relação com alguns elementos de sua vida, como filhos, música, corpo, memórias, e, principalmente, o seu lar.
Assim como o longa anterior do diretor Kleber Mendonça Filho, o maravilhoso O Som ao Redor (2013), Aquarius também é ambientado na multifacetada cidade do Recife. Em seu primeiro ato, em 1979, somos apresentados a uma protagonista em pleno processo de convivência com um câncer, mas, mais do que isso, conhecemos o mundo de Clara e como ela se relaciona com sua família, seus amigos, seu marido e sua doença. A fotografia em sépia, utilizada para remeter a uma história passada, também confere um ar de aconchego e harmonia a quem assiste, principalmente pela maneira com que nos envolvemos na cena da festa da tia Lúcia. Ali, Kleber assegura que o envolvimento entre os personagens, cenário e música guiarão a nossa visão da vida de Clara ao longo do filme. É nesta mesma cena que uma cômoda disposta no cenário é utilizada para dar significação à sexualidade da simpática tia Lúcia e, posteriormente, da protagonista.
Apresentada a Clara do segundo e terceiro atos, agora vivida por Sônia Braga – no que provavelmente é a melhor performance de sua carreira – encontramos uma mulher já vivida e com toda a bagagem de seus 66 anos de idade, morando sozinha e ainda no mesmo edifício onde sempre viveu, o Aquarius. O prédio já não tem a cor rosa e alegre de seus anos mais harmônicos. Agora, cercado por grandes empreendimentos com nomes em inglês, o edifício é azul, traduzindo a solidão e, sob um olhar capitalista, a decadência daquela edificação. Essa solidão, de certa forma, também reflete no estado de espírito de Clara, que transita os seus dias entre a convivência com velhas amigas, com passeios solitários pela orla e principalmente pelo seu apego às músicas que lembram o curso de sua vida e suas relações interpessoais – aqui, Kleber aproveita a ligação entre a protagonista e seus discos para dar significação à maravilhosa trilha sonora do longa. Aliás, toda a direção de arte do interior do apartamento é voltada para a criação do elo entre Clara e suas memórias, mostrando móveis antigos, livros, sua admirável coleção de LPs e como ela lida com esses sentimentos.
No entanto, ao contrário do que o contexto pode sugerir, Clara não é uma personagem triste. Ao contrário, é bastante forte e Aquarius imprime uma relação bastante honesta e empoderadora entre a personagem e como ela lida com o seu corpo e sua sexualidade. Aliás, é nesse círculo que Kleber engrandece ainda mais o protagonismo da mulher forte que Clara é e mostra o feminino enfrentando, sozinha, uma série de situações hostis promovidas por homens brancos e em posições de poder – representados pelo arquiteto Diego (Carrão) – de uma construtora que, a todo custo, quer se apoderar do seu apartamento, o último ainda habitado no edifício e que impede a empresa de demolí-lo. Ainda no debate sobre o papel das cores na obra, a partir do momento em que Clara decide encarar a situação e vencê-la, Aquarius vai sendo pintado de branco, sugerindo a força que a personagem tem dentro de si e sua disposição para encarar aquela adversidade. Ao inserir o elemento da construtora no roteiro, Kleber faz uma reflexão sobre o urbanismo contemporâneo no Brasil e, assim como em seu documentário Recife Frio (2009), critica o corporativismo imobiliário desenfreado de nossas capitais.
Aquarius é, portanto, um filme político. E as contestações sociais seguem em momentos importantes, como na cena em que Diego discute com Clara o fato de ela, uma burguesa, ter a pele “mais escura” e ter conquistado essa posição social. Ou, ainda mais forte, a cena em que alguns personagens estão numa praça fazendo um exercício teatral (gargalhadas) e dois rapazes – propositalmente negros – são inseridos na cena e se aproximam do grupo de pessoas. Seguramente Kleber quis testar o pré-julgamento do espectador e… bingo! Os rapazes, obviamente, não assaltam as pessoas e se juntam ao grupo para partilhar da atividade.
Dentre outros trunfos, e corroborando com a frase contida no pôster promocional do filme (Domínio absurdo do Cinema. Pedro Butcher – Folha de São Paulo), Aquarius conta muito de sua história com a utilização de recursos técnicos de câmera, como na cena em que Clara dança com homem numa festa e Kleber adota um plano fechado para ressaltar a aproximação que se criava entre os personagens. Na cena seguinte, ao ter que falar sobre o assunto tabu para aquele momento (câncer), o diretor recua e volta para o plano geral, sugerindo que aquela intimidade criada na cena anterior havia sido quebrada. Há outro belo plano em que Clara sai de sua cozinha, com cores vivas e fortes, para um corredor do prédio e arranca um adesivo de uma porta. Nesse corredor, há escuridão e frieza, destacando o vazio a abandono do resto do edifício. Quando clara volta para a sua cozinha, num curto plano sequência, as cores vivas e harmônicas de seu lar remontam o sentimento de aconchego e de representação do lar de Clara.
Sutil, belo, meticuloso e com uma rica linguagem cinematográfica, Aquarius já se consolida como um filme fundamental para o cinema brasileiro.
Nota: 5.0/5.0
Por Antônio Junio P. de Araújo.
“Cinéfilo por dedicação. Gosta de arte, música e política. Pode ser encontrado no Instagram.”
Reviews e Análises
Lispectorante – Crítica

Lispectorante de Renata Pinheiro, diferente de outras produções baseadas na obra de Clarice Lispector – A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral e A Paixão Segundo G.H. (2023) de Luiz Fernando Carvalho – não tem foco, especialmente, em nenhum texto da autora, mas consegue captar seu universo e soluciona o fluxo de consciência, característica primeira de sua literatura, através de cenas marcadas pelo fantástico.
Durante o longa acompanhamos Glória Hartman – uma artista plástica em crise, recém-divorciada e sem dinheiro – que retorna para sua terra natal, indo visitar sua tia Eva. Ao encontrar um guia de turismo com um grupo acaba interessando-se pelas informações sobre a casa de Clarice Lispector que, a partir daqui será o lugar do onírico e de profundas e solitárias discussões existenciais, preenchido por ruinas de um mundo apocalíptico.
Lispectorante, palavra inventada tradução do intraduzível, Oxe, pra mim listectorante é uma droga ilegal feita numa manhã de um Carnaval que se aproxima. Pra expectorar mágoas, prazeres, visgos e catarros num rio que vira charco
Entre o fazer artístico – sempre mostrado de forma fantástica, surrealista – e a necessidade de sustento, Glória se apaixona por Guitar, um artista de rua mais jovem com quem inicia um romance.
A escolha de Marcélia Cartaxo para viver Glória nos ajuda a encaixá-la no mundo de Clarice: é como se ela sempre tivesse estado ali, vivendo e sentindo todas aquelas subjetividades, mesmo sendo uma personagem de atitudes muito diferentes de Macabéa, que a atriz viveu em A Hora da Estrela. Glória é livre, mas seu momento de vida – uma mulher madura, recém-divorciada, sem dinheiro e em um “lance” com um homem mais jovem – nos remete as inseguranças de Macabéa – jovem, tímida e descobrindo o mundo. Ambas estão em transição!
Lispectorante é poético e tem um desfecho que não surpreende e nisso ele é excelente: não há outro caminho para o sentir do artista que as suas incertezas.
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