Gibiteca Refil
1986, o ano de virada dos super-heróis
Sempre brinco que eu não vivi nos anos 80, eu sobrevivi a eles. Dessa década maluca em que usar blusas com ombreiras e calças baggy (juntas!) era considerada uma boa ideia, o ano de 1986 deve ser lembrado, principalmente na cultura POP, como um marco. Se os ótimos artigos de Valdir Fumene Junior, aqui no Portal Refil, revivendo clássicos como Curtindo a vida adoidado e Conta Comigo não são argumentos suficientes para sustentar essa importância, que tal saber que os quadrinhos lançados nessa época foram essenciais para viabilizar toda esta onda de super-heróis nos cinemas. Exagero? Acredite, não é!
O Cavaleiro das Trevas
Quando Frank Miller imagina o mundo em que o vigilantismo é proibido por lei e o único super-herói em atividade é o Superman – encoleirado pelo governo dos EUA – ele já tinha consagrando-se na indústria por alavancar as vendas de Demolidor, no início dos aos 80, e por ter produzido, junto com Chris Claremont, a minissérie Wolverine.
O tom mais adulto e violento, mostrando Bruce Wayne não como o excêntrico milionário fantasiado em busca de vingança, mas como um homem amargurado e assombrado pelo seu passado, na melhor versão de Dirty Harry depois de Clint Eastwood – que Miller confessou ter sido uma de suas referências – parece ter sido a escolha não só de Tim Burton em seu Batman de 1989, mas também de Christopher Nolan na trilogia terminada em 2012.
Na HQ, com os super-heróis aposentados e a crescente onda de calor e violência em Gotham City, o Cavaleiro das Trevas ressurge com todas as limitações da idade, acompanhado de uma garota vestindo o manto do Menino Prodígio e disposto a limpar a cidade de sua nova ameaça, uma gangue que se intitula “mutantes”, nem que isso o leve a um duelo com o homem mais poderoso do mundo: o Superman.
Neste universo Miller traz de volta o Coringa (que sai do estado catatônico ao ver a volta de Batman em uma reportagem de TV), Harvey Dent, Selina Kyle e Oliver Queen, o Arqueiro Verde, que tem a melhor participação de todos os tempos!
O Cavaleiro das Trevas trata a trajetória de um homem, um ser humano, e é crível colocá-lo no “mundo real” mesmo esse sendo o Batman. Mas, como tornar verossímil seres superpoderosos vivendo conosco e fazendo o que deve ser feito?
Watchmen
O roteirista Mark Waid – responsável por Reino do Amanhã – além de toda a consultoria dada para outros meios quando o assunto é o Homem de Aço – quando convidado a recontar a origem do Superman, em 2002, confessou ficar sem resposta ao ser questionado por Dan Didio, Editor Executivo da DC Comics, da motivação das boas ações da personagem. “Por que ele faz o que ele faz? ” Waid tenta responder em Superman: O Legado das Estrelas, mas podemos acreditar que um ser extremamente poderoso, que poderia subjugar todos os habitantes deste planeta e viver como um Deus quer apenas ser aceito para, enfim, ter ter seu lugar neste mundo? Alan Moore parece não concordar!
Em Watchmen, os vigilantes fantasiados, que surgiram com a greve dos policiais, foram proibidos de atuar pela Lei Keene em 1977. Dois deles, porém, continuam na ativa: Doutor Manhattan e Rorschach. O primeiro, arma de Nixon que faz os EUA vitoriosos na Guerra do Vietnã, ainda trabalha para o governo. O segundo, um sociopata desajustado socialmente, que continua trocando sopapos com a marginália, porém longe dos holofotes, nas sombras. Alguém arrisca paralelos?
Nada do que for escrito aqui será tão relevante quanto própria experiência de ler Watchmen. Apenas quero deixar, como uma reflexão para uma possível resposta à pergunta feita por Didio a Waid, uma das falas mais emblemáticas do único ser superpoderoso da obra:
Um corpo vivo e um corpo morto contém o mesmo número de partículas. Estruturalmente não há diferença discernível. Vida e morte são abstrações não quantificáveis, por que deveria me importar?
Outras HQs como Maus (Art Spiegelman) e Monstro do Pântano (escrita por Alan Moore) também são contemporâneas a O cavaleiro das Trevas e Watchmen, mas, certamente, 1986 pode ser conhecido como o ano em que imaginamos os super-heróis poderiam ser tão reais quanto nós!
Gibiteca Refil
#MulherMaravilha80anos – Do Polígrafo ao Laço da Verdade
“Bela como Afrodite; sagaz como Atena; dotada da velocidade de Mercúrio e da força de Hércules – nós a conhecemos como Mulher-Maravilha. Mas quem pode nos dizer quem é ela ou de onde ela veio?” – All-Star Comics, dezembro de 1941
A Mulher-Maravilha não foi a primeira super-heroína dos quadrinhos e definir esse posto é algo bastante complexo. Levando-se em conta o que entendemos como super-herói (ter uma identidade secreta, poderes e usar um uniforme) o consenso é que a primeira super-heroína dos quadrinhos é a Hawkgirl, conhecida por aqui como Mulher-Gavião. Como explicar, então, que tamanha popularidade de Diana faça com que nem cogitemos acreditar nisso? É simples: o conceito.
Muitas personagens femininas foram criadas a partir do clichê Ms. Male Character, isto é, a versão feminina de uma personagem masculina. Shiera era a versão feminina do Gavião Negro, além de sua parceira amorosa, assim como as primeiras concepções de Miss Marvel e Batwoman. A Mulher-Maravilha já foi criada como uma personagem independente, com seu próprio mundo fictício e histórias em consonância com as discussões do período.
A primeira aparição de Diana no universo DC se deu em dezembro de 1941 na All-Star Comics número 8. Essa ainda não contava a origem da personagem, mas a história das Amazonas e o motivo delas irem parar em Themyscira. A narrativa do nascimento de Diana, que permaneceria intacta até sua reformulação pós-Crise, seria apresentada apenas em Wonder Woman número 1: esculpida por Hipólita, a partir do barro de Themyscira, a escultura desperta na Rainha das Amazonas um sentimento profundamente maternal e o desejo de que a forma tome vida, em uma releitura do mito de Pigmaleão e Galatéia. Afrodite atende ao pedido de Hipólita, trazendo a criança à vida, dando-lhe o nome de Diana, em homenagem a irmã gêmea de Apolo, deusa da Lua e da caça. O que nos faz pensar: como seus criadores chegaram a essas referências?
“Sinceramente, a Mulher-Maravilha é propaganda psicológica com vistas ao novo tipo de mulher que, na minha opinião, deveria dominar o mundo.” William Moulton Marston, março de 1945
A criação da personagem é atribuída ao roteirista Charles Moulton, pseudônimo do psicólogo William Moulton Marston, conhecido também como o inventor do polígrafo (a máquina da verdade). Já a concepção visual ficou a cargo de Harry G. Peter. Sempre esquecida nesta equação, porém, estava Elizabeth Holloway Marston esposa de William Marston e a quem o próprio se referia como coautora da personagem.
A luta pela igualdade feminina, presente nas primeiras histórias da Mulher-Maravilha – segundo Jill Lepore na biografia A história secreta da Mulher-Maravilha – remonta os primeiros anos de Marston em Harvard com o movimento pelo voto feminino e, principalmente, após ele ter ouvido a palestra da sufragista inglesa Emmeline Pankurst. Quase impedida de falar na universidade, simplesmente por ser mulher, Pankurst deixou Marston “fascinado, emocionado”. Já as referências gregas, possivelmente vieram de Holloway que amava a língua e as histórias que estudou em seus anos no ensino médio.
Desde a palestra de Emmeline Pankurst, a Mulher-Maravilha levou três décadas para aparecer, quando o seu principal idealizador já tinha 48 anos. Marston, após afirmar que via nos quadrinhos um grande potencial educacional, tornou-se uma espécie de psicólogo consultor da DC Comics. Foi aí que sugeriu ao editor Max Gaines uma super-heroína. A resposta inicial de Gaines foi dizer que personagens pulp e de quadrinhos femininas sempre eram um fracasso. Marston engendrou em argumento todos os anos em que defendeu os direitos das mulheres, recebendo a resposta “fiquei com o Superman depois que todo syndicate do país recusou. Vou dar uma chance a sua Mulher-Maravilha!”. Como condição o próprio Marston deveria escrever as histórias e se depois de seis meses os leitores não gostassem, essa seria descontinuada. Parece que acabou dando certo!
Como dito, Mulher-Maravilha não foi a primeira super-heroína, de fato, mas acredito que se tornou a primeira super-heroína por direito. Assim, convido você a comemorar durante os próximos meses os 80 anos de suas histórias e imaginário criados para a princesa amazona.
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